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“Entusiasmo, muita dedicação e vencendo vicissitudes várias”

Fotografia Adolfo Coutinho

Fotografia Adolfo Coutinho

Tudo começou com o sonho de ser jornalista. Adolfo Coutinho, juntamente com o professor Gonçalo Pinho, fundaram o jornal Voz de Cambra que, este ano, completa meio século de vida. O que os motivou na sua criação, mas também o que pensam hoje da sua edição, foi o que quisemos saber, em entrevista a Adolfo Coutinho que, depois do jornalismo, tem lançado vários livros, o seu último, “Alminhas de Cambra”.

Como surgiu a ideia de editar um jornal em Vale de Cambra?
Quando eu tinha os meus doze ou treze anos de idade e frequentava o Externato Cambrense, o senhor Padre Maurício, nosso professor de Português, mandou-nos fazer uma redação sobre coisas da nossa infância, então passada num meio rural.

Lembro-me que descrevi, de forma simples, mas com sentimento algo poético, o amanhecer visto da janela do meu quarto, numa manhã fria de Inverno, com um melro-de-bico-amarelo à cata de minhocas e outros insetos, saltitando sobre as leivas de terra fresca cobertas por uma camada de geada branca a que, então, chamávamos “neve”. O melro, no seu piar forte e agudo, rondava a caniçada que eu tinha armado no meu quintal, como que querendo dizer-me: – A mim não me apanhas… não vou cair na tua armadilha!…E a minha redação continuava com alegorias algo poéticas, que o Padre Maurício elogiou e leu perante uma turma de alunos, algo surpresos. -Temos aqui um futuro artista/escritor – disse ele, sorrindo.

O seu sonho era ser jornalista?
Sim, foi então que surgiu o sonho de ser jornalista. O meu tio, professor Tomaz Coutinho, recebia “O Jornal de Cambra”, impresso em Estarreja e que eu lia, de fugida, quando ia até sua casa. Pensei, então, e comecei a enviar para Estarreja alguns pequenos textos e notícias que, para meu natural orgulho, começaram a ser editados naquele Jornal. Isso prolongou-se por vários anos, até que, por volta de 1971, querendo trazer o título daquele periódico para Vale de Cambra, juntamente com o meu parente e amigo professor Gonçalo Pinho, iniciámos um projeto de melhoria e mudança de sede do “Jornal de Cambra”. Não sendo possível concretizar essa nossa pretensão e porque já tínhamos assumido vários compromissos, tivemos de criar um novo órgão de informação, “A Voz de Cambra”, cujo primeiro número foi editado em 15 de maio de 1971.

Com entusiasmo, muita dedicação e vencendo vicissitudes várias, mantive-me à frente da “Voz de Cambra” até 2002, altura em que o jornal passou a ser gerido por outras pessoas, com a jornalista Cristina Maria Santos a imprimir-lhe uma nova imagem, que muito me agrada.

 Já escreveu vários livros sobre a sua freguesia, mas também sobre Vale de Cambra. O que o leva a continuar a escrever sobre esta temática?
Liberto da responsabilidade de editar, quinzenalmente, “A Voz de Cambra”, e ao escrever as minhas “Memórias”, surgiu a ideia de aprofundar o conhecimento das minhas origens. Iniciei, então, uma pesquisa que me levou à construção de uma Base de Dados de Genealogia que reúne informações de muitos milhares de indivíduos, sobretudo naturais e residentes em Castelões, e também de Vale de Cambra e de outras localidades. Com esses dados preparei e publiquei uma série de livros com o título genérico de “Castelonenses ilustres”, a saber: Volume I em 2004; Vol. II em 2005; Vol. III em 2006; Vol. IV em 2007; Vol. V em 2008; Vol. VI em 2009, Vol. VII em 2010; e Vol. VIII em 2011.

 Recentemente publicou “Refojos” que tem sido muito solicitado. De que trata essa publicação?
A ideia de preparar este livro surgiu ao ver, no Facebook, umas fotografias que mostravam ruínas de uma antiga casa senhorial de Refojos e, tal como me aconteceu a mim, vários frequentadores das redes sociais logo fizeram diversos comentários sobre aquele local e pessoas importantes que antigamente ali moraram.

Eu próprio me interroguei: Como seria Refojos noutros tempos? Quem construiu e morou naqueles solares, agora em ruínas? Será que, conforme várias vezes ouvi dizer, Lopo Soares de Albergaria, Vice-Rei da Índia, andou por ali,?

Feitas algumas pesquisas, de imediato conclui que Lopo Soares de Albergaria, Vice-Rei da Índia, nascido em Lisboa cerca de 1442, contrariamente ao que se dizia em Vale de Cambra, não terá vivido em Refojos.

Prosseguindo as pesquisas a partir de Cristóvão Tavares, o Velho, nascido em 1550 em Refojos, onde casou, encontrei muitos dos seus descendentes ligados ao património e gentes de Refojos (título deste livro). Nesses seus antepassados aparecem alguns indivíduos com o nome Lopo Soares de Albergaria, mas nenhum deles foi Vice-Rei da índia.

Esclarecida esta dúvida, achei que seria interessante saber mais acerca destes solares em ruínas e sobre quem ali viveu. E foi então que, seguindo alguns registos escritos e aproveitando memórias de pessoas familiares de antigos caseiros daquela propriedade e que por ali brincaram em criança, consegui reconstruir a história do local, que fica escrita no livro Refojos, possivelmente com alguns erros (que peço me desculpem) e com muitas informações involuntariamente omissas, por falta de conhecimento próprio e por compreensíveis falhas de memória das pessoas com quem falei.

Sabemos que preparou e acaba de editar um livro com o título “Alminhas de Cambra”. De que trata em concreto, este novo livro?
A ideia de preparar este livro surgiu quando, ao ver imagens de umas “alminhas” que Cidália Bértola colocou nas redes sociais (à semelhança do que aconteceu com “Refojos”), pensei reproduzir aquela publicação, interrogando os cibernautas sobre a identificação dessas “alminhas”, qual o local onde se encontram, quem as terá mandado erigir, quando e porquê.

Os comentários surgiram de imediato, em grande quantidade e com notas interessantes, muitas das quais eu desconhecia. E eu, que pouco sabia sobre este assunto, que não sou etnógrafo, mas um simples curioso, logo pensei reunir o material possível e organizar uma publicação que possa elucidar outros Cambrenses, como eu também curiosos leitores de dados que possam perpetuar e tornar mais conhecida a cultura popular da nossa terra.

Fernando Correia, encaminhando-me para recolhas feitas em Vale de Cambra pela historiadora Clara Vide e para alguns estudos que ele próprio fez com o intuito de inventariar e georreferenciar as “alminhas”, esclarece que a “memória de um povo faz-se de representações e monumentos mais ou menos grandiosos, mas também, de edificações singelas na sua aparência, mas poderosas na imaginação popular. É assim que a cultura popular pelas almas do purgatório carrega um significado espiritual estratégico no mundo rural que se ritualiza em símbolos de base religiosa como são as ALMINHAS.”

Outra surpresa agradável que me chegou pouco depois foi uma grande e bem organizada coleção de fotografias de “alminhas” existentes no nosso concelho, espólio propriedade da professora Carolina Soares, da Rabaceira e outra, também grendae (grande) e importante, em poder de Jesus Tavares da Silva. E então o meu projeto inicial, sem fins lucrativos, ganhou nova dimensão, agora já com muito mais interesse e obrigatoriedade de divulgação pública. A ideia inicial estava largamente enriquecida, obrigando-me a alterar e ampliar o título do livro para “Alminhas de Cambra – por Adolfo Coutinho (como simples coordenador de um trabalho mais vasto, preparado por vários e ilustres Cambrenses) e outros”.

Como pretende lançar o livro, tendo em conta as restrições devido à pandemia?
Este livro está pronto. Não podendo haver sessão pública de apresentação e entrega, por causa do confinamento a que todos estamos sujeitos e temos de respeitar, o livro vai ser enviado, por correio, para os leitores interessados, que previamente reservaram um ou mais exemplares.

Há vários anos que vive no Porto. Já pensou voltar às origens e viver em Vale de Cambra?
Já tive essa intenção e cheguei mesmo a comprar um apartamento no Habicambra. De momento pus essa ideia de lado. Já tenho 80 anos de idade e poderia prejudicar o fácil e rápido acesso a cuidados de saúde, mais próximos no local onde vivo.

Por outro lado, sinto-me um pouco desiludido com uma suposta falta de atenção dada ao trabalho cultural que venho desenvolvendo ao longo de tantos anos. São muitos os “títulos” que já publiquei em Vale de Cambra, sem ajuda das entidades oficiais e/ou industriais da terra que me viu nascer e que nunca esqueci. Tenho centenas de livros armazenados em minha casa, em Matosinhos, e, por falta de espaço próprio, em casa de familiares, residente (residentes) em Cabril. E, sobre este assunto é melhor ficar calado. Só agora recebi uma pequena, mas simpática, ajuda de duas autarquias locais, que compraram 55 exemplares do meu mais recente livro “Alminhas de Cambra” E, mais não digo, para não queimar a minha ténue imagem e para não criar inimizades à minha querida “Voz de Cambra”.

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