O meu é um país frio de sol quente, dizem. De repente, há poucos anos, o sol começou a arrefecer para tantos! E foram à procura do sol quente de países frios… Emigraram! Acordo muito cedo. Vou para a rua. Tudo limpo, tudo asseado, tudo ajardinado. Uma cidadezinha que é um jardim.
Olho à volta. Os montes erguem-se imponentes na sua alvura; os abetos pintalgam-se de branco, mais abaixo; mais abaixo ainda, quase no sopé dos montes, o Criador inventou uma paisagem de tons dourados, castanhos, acobreados, amarelados, feita de folhas que o vento vai levando e, quando o inverno avançar, tudo ficará tão branco como os cimos dos montes. Estou atenta às conversas dos grupos que passam:
-Salut, Isabel, Bonjour! Já vais para o trabalho?
– Mais oui! Que é que queres? É a vida! Voilà! Mais adiante, um grupo de rapazolas corre para o comboio.
-Sabes quem chegou há três dias?
– Sei. Foi o António da Ti Malvina.
– Pois, pois! Mais il dit qu’il va partir là-bas…
-Prometeram-lhe um boulot na refinaria que era do Kadhafi e olha, chegou e não arranjou nada! Vai voltar lá para baixo, triste como a noite! Pensava que era fácil! Na manhã do dia seguinte a ter chegado já pensava que ia trabalhar!
– É, não está a aguentar-se… Pensava que era fácil? Quem lhe terá dito tal coisa? Vai ser preciso ampará-lo! E lá seguiram, apressados, para o trabalho. Triste e acabrunhado, António foi deambulando pela cidadezinha, de mãos nos bolsos, deitando contas à vida. De repente, deu com um letreiro num edifício : Centro Português. Já lhe tinham falado naquele lugar. Sabia que ali encontraria conforto de amigos ou apenas de conhecidos mas que falavam a mesma língua, um lugar onde se comia churrasco, bacalhau ou umas boas bifanas; um lugar onde podia sentar-se numa mesa a matar o tempo num jogo de damas, de dominó ou de cartas. Ou então podia, simplesmente, sentar-se a ver televisão que, nos canais portugueses, lhe traria notícias frescas do seu país, ou os jogos de futebol do seu clube preferido. E, se assim fosse, ficaria pelo menos aturdido por algum tempo com o seu quase desistir do sonho, misturado com o entusiasmo que via nos que já lá estavam há muito tempo e viam a vida melhorar. Ao lado, numa mesa, duas amigas conversavam:
– Amanhã, eu e a Isabel vamos para os campos. As máquinas vão começar a récolte das cenouras, vamos poder apanhar e depois congelar cenouras para uma grande temporada. A outra, que nunca tinha ouvido falar em tal, mas que já tinha reparado nas imensas plantações dessa raiz comestível e tão saudável, pediu explicações à experimentada amiga para lhe contar que, assim que passavam as máquinas da colheita, logo podiam encher sacos e sacos de cenouras que os agricultores deixavam para trás e que viriam a apodrecer na terra. O olhar da outra arregalou-se mais ainda quando a sua interlocutora acrescentou que se podia fazer o mesmo nos campos, a perder de vista, de cebolas e às vezes até de batatas!
– Mas isso é uma maravilha! Escusámos de gastar o nosso dinheiro que nos custa tanto a ganhar a comprá-las!
-Claro! Mas olha que não é só! Ainda há pouco, por exemplo, apanhei, eu e o meu homem, mais a canalha, sacos e sacos de nozes e de castanhas! Depois, é bom estar na lareira a parti-las ao serão…
– Mas…Não é proibido?
– Não! Claro que não. Se fosse, não o fazíamos. Só se faz isto em determinados lugares que pertencem à Comuna, ou seja, ao Estado. São árvores que estão à beira das estradas ou a separar caminhos, campos… Sabes, acho que até lhes fazemos um favor – fica tudo limpinho! A outra rapariga embasbacava-se. Tudo tão diferente do seu país! Também chegara não havia muito tempo, mas já tinha um boulot de que gostava. Trabalhava num magasin, era um trabalho leve, fácil, até agradável. Um palminho de cara moreno, bonito e bem português, uma simpatia irradiante e ali estava, na secção de perfumaria, feliz! Voltou a primeira: – E olha, no tempo das cerejas, hás-de ver a pequenada, todos às cerejas! E os grandes também! Parece prenda do Céu! António não perdeu pitada desta conversa, pois estes hábitos trouxeram-lhe algum alento. Havia de se arranjar. Era português dos rijos, não tinha medo do trabalho e não ia desistir à primeira. Também sabia que havia um forte sentimento de solidariedade naquela cidadezinha que não havia de o deixar cair.
Volto para casa. A Lurdes anda à volta dos tachos. Está na chômage. Mas amanhã a assurance vai pagar-lhe a infiltração de cortisona na coluna, que desgraçou na fábrica das janelas. E, em breve, um cheirinho a rojões traz um pouco do sol quente do nosso país frio…
– Sabes, Alípio, hoje, além de nós, também vem o Fábio, o Luís, o Rafael, o Paulo e a Isabel; também o Edi, a mulher e as filhas; não achas melhor também chamar o António? Temos que ver se lhe arranjamos um boulot! Está descoroçoado! E o cheirinho a rojões intensificava-se… Um vaporzinho perfumado soltava-se do panelão, entrava em toda a pequena casa, onde o móvel maior parece ser a mesa, maior do que a própria sala, talvez maior do que a própria casa, pois aí cabe sempre mais um e, por isso, lá brilha sempre o sol quente do meu frio país.
II
Depois, anos mais tarde, sorrateira e insidiosa, chegou a pandemia. A família de Lurdes e Alípio já tinha comprado bilhetes de avião para vir passar a Páscoa. Regressavam regularmente ao ninho português. Sempre que a vida o permitia. Esse cordão umbilical que tantos e tantos dos nossos emigrantes não sabem cortar. Mas todos os dias chegavam notícias alarmantes que tornavam mais e mais remota a hipótese da vinda à terra. Ele, “chauffeur” de camiões, não parou de trabalhar. Andava bem informado. Ouvia aqui, ouvia ali, e o sonho do regresso por uns dias a Portugal foi-se esfumando, até que se esfumou de todo. Fariam, como fariam em Portugal muitas pessoas, uma cruz de flores que colocariam na parede exterior da casa ou na varanda, para se reencontrarem assim na sua fé e se ligarem mais e mais entre si naquele momento de grande apreensão em relação ao futuro. A dor de não poder partir era grande mas atenuada pela Tecnologia que os mais novos já dominavam na perfeição e que os mais velhos iam aprendendo. Calaram-se as fábricas, pararam os transportes, toda a gente ficou dentro de porta, e assim se foram vivendo semanas… Quando chegou a altura das festas de Santo António na terra, tudo estava a acalmar. Mas as fronteiras francesa e espanhola fechadas eram um entrave. No entanto, a vontade de celebrar o aniversário da mãe que coincidia com o dia de Santo António, padroeiro da sua cidade, puseram-lhe ferro na vontade e lá conseguiu uns documentos incertos mas legais, que lhe permitiriam, com limites de horas, atravessar os dois países de carro. Consigo trouxe o António que, com a solidariedade dos outros emigrantes e deste seu amigo, lá conseguiu dar rumo à sua vida naquelas terras. Os dois sozinhos, sem a família, fizeram-se à estrada. Era melhor assim: e se os documentos não funcionassem e tivessem de voltar para trás? Não! Assim, partilharam os transtornos da pandemia: ela, a mulher, ficou, um dos pequenos fazia anos, e eles, eles tentariam chegar à sua terra. Quem sabia se, com um pouco de sorte, talvez pudessem assistir, ainda que pela televisão, a jogos quer do SLB quer do FCP. Aos verdadeiros amigos o vírus da clubite não ataca! Uma vez na sua terra, e passados dias, souberam que as fronteiras abririam a 21 de Junho e então nasceu-lhes alma nova. Regressariam sem temores, guardando, mesmo assim, por precaução, os documentos preciosos com eles. Preciosos sim, porque tinham permitido festejar junto da mãe o seu aniversário e viver, na sua cidade, com o coração em festa, as comemorações do Santo casamenteiro, ainda que sem arraiais, marchas ou manjericos. Além de tudo isto, tinham ainda constatado com os seus próprios olhos que toda a família se encontrava de saúde e que a pandemia se mantivera afastada, o que os levava a regressar ao país que os acolhera com alegria e vontade de continuar a concorrer para o sucesso do seu país. De facto, olhar um português emigrado é ver a bandeira de Portugal.