Diz-se frequentemente que os historiadores estão condenados a verem repetir-se trágicos eventos ao longo das suas vidas, pois ao estudarem a História da Humanidade, e conhecendo o complicado enredo das acções humanas na civilização, prevêem, quase invariavelmente, por culpa de nossa casmurra natureza, os crassos erros que cometeremos, esses que já foram cometidos copiosamente. “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado” (Marc Bloch). Mas, dentre os sábios que se inteiram do Mundo, também os cientistas sofrem dessa frustração, porquanto os detalhados registos, teóricos e numéricos, que têm enriquecido e aperfeiçoado durante centenas de anos, mostram conclusões infalíveis.
Quando, em 1800, Alexander von Humboldt (1769 – 1859), pai da História Natural e pioneiro da Ecologia Moderna, chegou ao lago Valencia, na Venezuela, para estudar a sua Natureza, recolhendo dados biológicos, geológicos e climatéricos, foi confrontado com os relatos dos habitantes locais, que lhe diziam que os níveis da água do colossal corpo de água estavam a cair rapidamente. Ao que parecia, importantes áreas de terra, que há apenas algumas décadas estavam submersas, tornaram-se em campos densamente cultivados. Seria talvez tentador afirmar que, se o local tivesse passado um longo período de tempo sem receber chuva, a água do lago teria escorrido por um qualquer efluente, contribuindo para a perda do vital líquido. No entanto, o lago Valencia não possui saídas para o mar, é o último destino de alguns riachos que o alimentam, pelo que os seus níveis de água são influenciados apenas pela evaporação. Embora os habitantes acreditassem numa hipotética fenda no fundo do lago, argumento meramente especulativo que encontraram para explicar o fenómeno, Humboldt olhou em seu redor e convenceu-se de que a resposta estaria ao seu alcance: para além de ter observado que nos níveis superiores dos ilhéus, que graniam o interior do grande lago, espraiavam-se areais de grãos extremamente finos, confirmou que o mesmo acontecia nas margens dele. Ao ter calculado a taxa de evaporação média anual em rios e lagos por todo o mundo, aferiu que a perda de água daquele caso específico não seguia, propriamente, um ritmo normal, tendo em conta as circunstâncias climáticas envolventes. “As nossas terras estão a secar! As nossas culturas estão a definhar! A fome poderá instalar-se!”, terão dito os locais a Humboldt. O dedicado cientista descobriu, então, que alguns dos riachos que desaguavam no lago Valencia, haviam sido desviados para regar os campos de cultivo. Demais, à medida que o Homem ia destruindo a luxuriante floresta para instalar a agricultura, os solos começaram a ficar expostos, e, progressivamente, em maior quantidade, aos agentes erosivos. Por já não haver árvores que sombreavam os terrenos, o solo secou, queimou, esterilizou-se; os musgos e a manta morta já lá não estavam para reter a água, e o sistema radicular de grandes e pequenas plantas, que seguravam a terra no sítio, haviam perecido com a sua parte aérea. Humboldt desabafou no seu diário que os primeiros colonos tinham “imprudentemente destruído a floresta”. Apresento, portanto, ao meu caro leitor, uma mente ambientalmente consciente do início do século XIX. Isto como prova de que a noção fundamental sobre a importância do equilíbrio ecológico não é, na verdade, nenhuma questão recente, entenda-se.
A desflorestação desregrada é, ouso asseverar, um hábito da nossa espécie, que ter-se-á revelado mais evidentemente há cerca de seis séculos. De então até ao presente, essa actividade destrutiva não tem cessado, a biodiversidade tem diminuído, as doenças aumentado, o planeta padecido e o clima sofrido bruscas alterações, tudo isto numa rede inquebrável, ao estilo de labirinto sem saída. Hoje, quem não aceita esta certeza terá, receio, assumido um ressoante título de ignorante. Não se trata de ambientalismos utópicos, nem de políticas incertas, senão de, tão simplesmente, conhecermos a nossa significação no cosmos: somos tão importantes como uma partícula de cotão e, no entanto, arruinamos a única casa que temos na vasta infinidade do Universo. Seremos, por isso, detentores de grande poder? Não. Somos, sim, animais frágeis, irresponsáveis e inconsequentes. Afogamo-nos se o oceano se enfurece; vacilamos se o sol brilha mais intensamente; desaparecemos no caminho de um tornado; matamos os nossos congéneres para exibirmos credos primitivos. Agora, como em tempos já sucedeu, é um ser ultramicroscópico que compromete a nossa sobrevivência. E não estamos, sequer, livres da erupção de um supervulcão ou da colisão de um corpo extraterrestre com a superfície do planeta que habitamos. Perante a realidade, que é esta, caro leitor, concordará, certamente, que a redundante posição bíblica de soberania sobre o mundo deve conhecer o seu fim. Ao ser humano, mamífero africano, primata bípede, detentor de extraordinária capacidade intelectual, impõe-se a tarefa de assentar os pés no chão e curvar-se perante o Mundo Natural, onde, nele, se incluem outros seres iguais a si.
Alexander von Humboldt foi um cientista. Como ele, ou, pelo menos, na mesma condição profissional, muitos houve, antes e depois dele. Nós somos os de hoje, aqueles com o distinto privilégio de poder sorver muito do Conhecimento gerado pelos gigantes em cujos ombros vamos caminhando. E “a Ciência pode outorgar-nos elementos que precisamos para salvar a Humanidade. Sem embargo, as decisões não podem ser tomadas, ainda, pelos cientistas. São tomadas pelos políticos” (Félix Rodríguez de la Fuente, 1978). Para pesar do povo, de científico, os políticos têm muito pouco. Percorrendo a escadaria económica de nossas vidas e de quem rege a forma como as vivemos, desde a Assembleia da República até ao nosso lar, porque a influência chega até à forma como “decidimos” cruzar as pernas ou ao sentido em que diluímos o açúcar no café, é bastante óbvia a agnosia em relação à valorização da Terra e suas potencialidades. Se não crê no que digo, caro leitor, percorra essa escadaria metafórica que sugeri, e tente discriminar alguém com poder, vontade e conhecimento suficientes para que, a esse nível, eleve o povo português. Escreva-me, se encontrar.
* “O Homem e a Terra” (“El Hombre y la Tierra”) é o título de uma série televisiva de documentários sobre vida selvagem apresentada por Félix Rodríguez de la Fuente (1928 – 1980), médico e naturalista espanhol.